A mentira como método, a violência como argumento

Carlos Frederico Marés
Carlos Frederico Marés

Pode ter vários nomes a mentira, fake news, pós-verdade, lorota boa, embuste, aldrabice, e quantos mais. Pode servir a vários propósitos também, alguns até altruístas, quem sabe? Mas a mentira que se revela no mundo da maldade em que vivemos não é apenas uma inverdade, é um método. E é um método porque a verdade não convém, como dizia Al Gore. Não convém a quem? A quem profere a mentira ou a quem induz a que mentira seja proferida?
Até nas coisas simples da vida apresentadas nas prateleiras do supermercado ou no mostruário de celulares, se escondem mentiras, as vezes pequena, as vezes muito grandes. No centro da praça a estátua equestre revela o nome do herói de espada em riste lutando contra o povo, mas não conta o nome do cavalo que suportou a carga e provavelmente foi abandonado próximo ao campo de batalha, e nem revela a covardia da espada contra o povo.
A história vai sendo contada com pós-verdades, os documentos não contam tudo, os relatos vão sendo calados e aos heróis, retratados em seus cavalos, são atribuídos vitórias incrívesi que na realidade foram apenas atos de covardia. Assim foram as mentiras da modernidade, o herói levantava a espada em nome da liberdade e escravizava trabalhadores, em nome da igualdade e exterminava indígenas, em nome da justiça e usurpava terras dos camponeses.
Mas essas são histórias antigas, quem vai querer se lembrar do passado remoto? A mentira de hoje tem outro patamar. De onde será que a eleita senadora Damares tirou as horrendas histórias de violação de criancinhas? São mentiras convenientes porque escondem as violações permanentes de crianças e adultos com fome. É verdade que os inventores de histórias infantis sempre foram bons em criar situações da mais baixa condição ética, afinal os pais de João e Maria abandonaram seus filhos por que era muito caro o sustento, mas depois que eles mataram e roubaram uma mulher que morava numa casa de doces os receberam com alegria. Damares foi contar às criancinhas da Igreja uma história de mentira e violência para que seus pais não deixassem de votar no seu candidato, senão, como vingança uns lobos maus roubariam as crianças, arrancariam os dentes e as levariam para Sodoma, mas teve o cuidado de contar cada detalhe, cada minúcia, pormenor. Afinal, uma boa mentira para parecer verdade tem que ser rica em detalhes. Os detalhes insólitos e não bem compreendidos são os que geram mais medo.
Mas a mentira não é método para esconder a verdade. É método para alcançar objetivos. Seja para conquistar votos, seja para amealhar riquezas. Seja para colonizar povos. A mentira como método consome a natureza, destrói povos pacíficos, agride mulheres. Mas a mentira não se sustenta como método se não estiver construída sob o argumento da violência. E, então, a violência impera. A violência é necessária para impor o medo e o medo necessário para acreditar na mentira.
O que seria da escravidão, a mentira da liberdade, se não fosse a violência? Como se suportaria a mentira da raça superior se não fosse a masmorra, a chibata e o fuzil? Na América Latina, e no Brasil é claro, os golpes de Estado contra governos legítimos sempre se deram com mentiras ditas com seriedade teatral. Em 64 disseram que o governo legítimo queria acabar com a liberdade, então impuseram o terror, sem liberdade, por 24 anos. Em 2016 não sabiam o que dizer, então inventaram “pedaladas” e, então, pedalaram, e para sustentar a mentira passaram a xingar as pessoas nas ruas, agredir, atribuir aos outros a torpeza própria. Todos os golpes da América Latina se mantiveram com armas na mão, sempre com uma violência permanente, semeada de torturas, sequestros, prisões ilegais, banimentos. O golpe de 16 precisou de mentira violenta, um juiz incompetente e parcial teve que manter preso o candidato que legitimaria o pleito e uma trinca de desembargadores federais ratificaram o ato sem chance de recursos. Quando o poder libera a violência, o guarda da esquina não economiza o cassetete, nem o fuzil.
Mas a violência que o golpe impôs à sociedade e ao povo brasileiro foi maior que a prisão e a inabilitação do candidato, foi a formação e a imposição do medo, da ameaça de golpe de estado, sempre alardeado tendo por trás uma cara carrancuda, soturna e ornada com quepe, ostentando uma farda carregada de medalhas. Para a mentira e a violência não importa a lei. Aliás, a lei foi outra mentira histórica, as oligarquias sempre fizeram as leis, mas tanto falam em liberdade que, as vezes, de tanto mentir e violar não conseguem evitar uma lei que restrinja a violência como argumento e a mentira como método. Então, os donos do poder, como dizia Raymundo Faoro, já não respeitam a lei e fazem como se ela pareça não existisse.
Assim foi nestas eleições de 2022. Se em 2018 impediram o candidato de se candidatar e mantiveram sob o manto da violência o método da mentira, neste 2022 resolveram violar as leis e impor aos eleitores um candidato único. Todos os benefícios possíveis, e ilegais ao candidato do poder. Aos eleitores, todas as ameaças, assédio a trabalhadores, impedimento de chegar às urnas, promessas de recompensas. E mentiras! Muitas mentiras! Mentiras articuladas como método e a violência para mantê-las. A jornalista que ousou portar um adesivo de Lula foi espancada no centro de Curitiba. Poucas pessoas tiveram coragem de sair as ruas portanto um distintivo do candidato de oposição. O comandante da Polícia Rodoviária Federal resolveu bloquear as estradas para impedir o trânsito de eleitores depois de postar e apagar propaganda da reeleição. O aliado do Presidente recebeu a polícia federal a bala e granada e os policiais sequer o algemaram. A deputada sacou a pistola no meio da rua e ameaçou atirar num homem negro.
O terror impôs o silêncio!
E silenciosamente as eleitoras, cidadãs, cidadãos e eleitores, se dirigiram às urnas. Fato inédito, em maior quantidade do que no primeiro turno e, apesar do medo, venceu a esperança. A festa foi respeitada.
Mas a mentira como método e a violência como argumento ainda não foram derrotados. Nos porões escuros estão articulando e voltarão. Aprender com o Nordeste, com a metade sul do Rio Grande do Sul, com o norte de Minas, com a Amazônia, será a tarefa de quantas e quantos desejam derrotar o medo e estabelecer a paz com o ruído doce da alegria. Temos que aprender a lição antiga, a mentira tem pernas curtas e a violência não ensina.

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