As portas abertas no Chile

Carlos Frederico Marés

O povo chileno buscava construir, de forma pacífica e eleitoral, um Estado Socialista sob a direção de Salvador Allende quando, em 1973, sofreu um violento golpe de Estado sabidamente auspiciado pelos Estados Unidos e pelas ditaduras da América Latina. O golpe chileno de 1973 foi de todos o mais violento, com tentáculos por várias partes do mundo, espalhando o terror da Operação Condor. A tal ponto e com tal descaramento que em 1976 matou, com atentado à bomba, Orlando Letelier, ex-embaixador do Chile nos EUA e ex-ministro de Allende, voz poderosa de denúncia dos atropelos da ditadura, não em Santiago, mas na Embassy Row, Washington, D.C., no coração do Império. O terror de Estado, como se vê, não tinha limites nem fronteiras. 

A violência, tortura, mortes e opressão impuseram um sistema econômico neoliberal que deveria servir de modelo para todas as economias dependentes: privatização da saúde, da educação, dos transportes, privatização das terras, negando direitos a camponeses e indígenas, precarização das relações de trabalho, privatização das águas, dos minérios e de tudo que pudesse ser transformado em mercadoria, mesmo que destruísse a natureza, os povos, as culturas e os direitos. O modelo foi implantado à força, mas detalhada e competentemente regulamentado por leis. Amarrado em legislações de duvidosa legitimidade, foi sendo construído um hábil sistema jurídico que suportava a economia predatória, de difícil reversão, pensado para sobreviver mesmo depois de afastada a ditadura formal, estruturado como estado neoliberal, de parcas e insuficientes políticas públicas sociais e fortíssimo aparato policial repressor.  

Por isso mesmo, os juristas tiveram papel crucial. Orientada por Jaime Guzmán, a ditadura organizou um sistema constitucional e judiciário para impedir qualquer mudança, mesmo depois de seu fim. A Constituição elaborada e aprovada em 1980 praticamente impossibilitava sua reforma. As poucas e difíceis mudança havidas tiveram que ser aprovadas por dois terços do Parlamento, receber a sanção do Presidente da República e o crivo de um Tribunal Constitucional formado por sete membros, com mandato certo, eleitos de tal forma pelos órgãos do Estado que garantisse uma maioria sempre fosse conservadora. Por isso, quando a Presidenta socialista Michelle Bachelet, atendendo a grande mobilização estudantil, fez aprovar a reforma do ensino, a Corte Constitucional negou sua aplicação por violação a regras formais constitucionais e a educação continuou privada, cara e acessível apenas para as elites e a presidenta em dívida com a sociedade. Era a força do Estado autocrático que se mantinha apesar do sonho transformador da presidenta e do povo.

O povo, apesar da intensa propaganda contrária levada a cabo pelo próprio Governo, quis. 78% dos votantes disseram sim.

O povo chileno empobreceu. Quando as famílias não puderam mais pagar as escolas, os mais velhos perderam sua aposentadoria, os camponeses viram secar suas semeaduras pela apropriação privada da água e os indígenas perderam suas fontes de vida, terra e água, se iniciou uma grande rebelião no país, o povo saiu para as ruas. Sem saídas, acossado por uma mobilização que fazia lembrar os anos 70 do século XX, o governo da mais conservadora direita acenou com a possibilidade de mudanças constitucionais para reformar o sistema. Era a chance de mudar, mais uma vez pela via eleitoral, o destino do Chile. 

As elites, apoiadas pelos discípulos de Jaime Guzmán, prepararam uma arapuca ao amável e combativo povo chileno. Primeiro, houve um plebiscito para saber se o povo desejava ou não uma nova constituição. O povo, apesar da intensa propaganda contrária levada a cabo pelo próprio Governo, quis. 78% dos votantes disseram sim. Massivamente derrotada, a direita armou uma constituinte de improvável sucesso. Foram convocadas eleições para sua formação mas, qualquer mudança somente seria aceita se dois terços dos eleitos aprovassem a nova regra sob pena de manter a velha e opressiva ordem neoliberal. Quer dizer, para qualquer mudança seria necessário somar 67% dos votos. O status quo estaria mantido com magros 33% dos votantes. A arrogante e confiante direita chilena tinha certeza que isso seria conseguido com certa facilidade, mas não quis arriscar muito e organizou eleições que em tudo favoreciam o partido da direita e enfraquecia os de esquerda, possibilitando candidaturas independentes, com a clara intenção de dividir as propostas de mudança. As eleições escolheriam 155 deputados constituintes, bastaria a vontade 52 para obstar qualquer regra nova. Estava mantido o direito de veto da minoria, o que significaria a continuidade da velha Constituição neoliberal de Pinochet e Guzmán. Na contramão de todos processos constituintes, o chileno foi montado como uma reforma constitucional baseada na velha ordem, travando a vontade expressa dos 78% que votaram no plebiscito e pelo povo na rua. Quem de fora olhava tinha a certeza de que haveria mudanças para que tudo continuasse no mesmo. Mas não foi assim que procederam os movimentos sociais e militantes independentes. Saíram às ruas de porta em porta angariar votos, apesar da pandemia. Era preciso confiar.

A primeira vitória dos movimentos populares e sociais foi obter uma reserva de 17 cadeiras para os povos originários, 7 cadeiras ao povo Mapuche, 2 ao povo Aimara e 1 para cada um dos povos atacamenho, chango, colla, diaguita, kawéskar, quechua, rapanui, yagán. Os próprios povos escolheriam seus representantes. Em seguida as mulheres conseguiram que a Assembleia Constituinte tivesse paridade de gênero. As duas vitórias somadas, porém, não garantiriam os 67% de votos reformadores, mas era um alento, uma novidade no mundo racista e machista das elites brancas, masculinas e ricas. Os sonhadores viram nisso um sopro de esperança, mas a receita pensada pela direita parecia que ia funcionar, proliferaram pelo país abundantes candidaturas avulsas e houve um efetivo enfraquecimento dos partidos de esquerda. Do outro lado, todas as forças conservadoras se aliaram ao lado de uma coligação sob a direção do Presidente da República em segundo mandato, Sebastián Piñera, era impossível não obter os 52 votos necessários para o veto. A direita nunca obtivera menos do que isso. A festa de vitória antecipada da direita era contida, mas real e insinuada pela propaganda oficial. 

Dia 16 de maio as urnas começam a ser abertas. Os sonhadores esfregaram os olhos para saber se realmente estavam acordados ou ainda viviam um de seus melhores sonhos inalcançáveis. Estava escondida uma terceira vitória para além dos originários e mulheres, os jovens votaram e foram votados, em massa. Dos 155 constituintes, a unidade de direita obteve apenas 37 cadeiras, 15 menos do que as necessárias ao veto. As discussões que irão ser travadas na constituinte não serão em vão. 118 cadeiras foram obtidas pelas forças que pregavam mudanças, 15 a mais, portanto, das necessárias para aprovação de mudanças, independente de qualquer voto de direita. Maioria de mulheres, jovens e feministas. Está claro que nem as trinta e sete cadeiras de direita, nem as outras cento e dezoito são blocos monolíticos, mas haverá discussão e as grandes mudanças podem até não serem aprovadas, mas não serão singelamente vetadas, argumentos serão esgrimidos, opções serão feitas. As dificuldades serão imensas, principalmente em pontos sensíveis que atinjam o coração do neoliberalismo.

O resultado não foi menos surpreendente e auspicioso, Irací Hassler, comunista, 30 anos, foi eleita prefeita de Santiago; Macarena Ripamonti, militante da organização Revolução Democrática, 29 anos, foi eleita prefeita de Viña del Mar, a emblemática cid
ade jardim do Pacífico, menina dos olhos da elite chilena.

O Chile amanheceu, então, com as portas abertas, expondo uma face sorridente, sábia e com o olhar pregado no futuro. Entre os povos originários, a mais votada foi Francisca Linconao Huircapan, 62 anos, perseguida, processada, criminalizada, que é uma autoridade espiritual mapuche, uma “machi”, e carrega 500 anos de resistência nas costas e saberá liderar as mudanças necessárias aos povos, terá voz e voto pela primeira vez na história do mundo colonial. 

Foram eleitos, também novos prefeitos e alguns governadores (três, de dezesseis regiões, nas demais haverá segundo turno em junho). O resultado não foi menos surpreendente e auspicioso, Irací Hassler, comunista, 30 anos, foi eleita prefeita de Santiago; Macarena Ripamonti, militante da organização Revolução Democrática, 29 anos, foi eleita prefeita de Viña del Mar, a emblemática cidade jardim do Pacífico, menina dos olhos da elite chilena. Com o detalhe de que em Santiago dos dez conselheiros (vereadores) oito são mulheres, de esquerda e dois homens, de direita. A lista poderia continuar, longa e expressiva de jovens comprometidas com movimentos sociais, militantes, independentes, que têm a mudança como desafio e a esperança como combustível. É provável que nem todas as mudanças sonhadas sejam alcançadas, mas o Chie já não será o mesmo depois de promulgada a Constituição, a esperança voltará a ter força redobrada. 

Quase 50 anos depois da experiência pacifista e democrática de Salvador Allende, sufocada em sangue, jovens que não a viveram mas a conheceram pela memória de seus pais e pelas dramáticas consequências da opressão, têm em suas mãos as rédeas e o timão que conduzirão a nação ao futuro, promovendo mudanças necessárias na opressiva sociedade dominada pelo capital internacional, sem pátria, sem escrúpulos e sem sentimentos humanos. Conseguirão? No Chile onde tudo tem dono, da gota d’água ao minério de cobre, da escola às estradas e ruas, da aposentadoria do retirado ao financiamento do curso técnico, será possível mudar pelo voto? Só o futuro, próximo, dirá, mas este maio pandêmico no Chile abriu as portas para mudanças e Salvador Allende revive em cada jovem ‘alcaldesa’, ‘alcalde’ e constituinte, alimentando a esperança de alcançar um mundo onde seus netos e bisnetos possam viver, sonhar e rir.

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