Toussaint L’Overture, o libertador traído

Carlos Frederico Marés
Carlos Frederico Marés

O título de Libertador Traído serve para quase todos os libertadores das Américas. Bolívar, San Martin, Hidalgo, Morelos, Artigas, e até mesmo os menos libertadores, como Miranda e Tiradentes, foram traídos antes de ocupar o poder independente. O adjetivo não pode ser atribuído diretamente ao Dr. Francia, a quem as oligarquias não gostam de chamar de libertador porque foi um dos raros, senão o único, que libertou de fato seu país e quando morreu, de causas naturais, entregou ao sucessor um Paraguai livre e americano, falando guarani, sem fome nem subserviência. Talvez se possa incluir na categoria de traição a aliança dos três vizinhos, Argentina, Brasil e Uruguai apoiados e incitados pela Inglaterra, para uma guerra colonial à morte, mas, então, a traição já não foi ao Dr. Francia, mas ao povo paraguaio.

A traição à Toussaint L’Overture, porém, o levou a morte em 7 de abril de 1803, há 222 anos. Momento oportuno para lembrá-lo, reverenciá-lo, homenageá-lo porque as oligarquias tampouco gostam de o incluir no rol de libertadores e de herói das Américas. Quem o traiu, porém, não foi um de seus pares na guerra de libertação, como ocorreu com Bolívar, San Martín e Artigas, quem o traiu foi Napoleão Bonaparte, o general do liberalismo. L’Overture foi o primeiro Libertador das Américas a conquistar a liberdade para seu país e pagou com a própria vida tal ousadia. Por ter sido escravizado, tinha muito claro o significado da palavra liberdade e a necessidade de lutar por ela. O seu erro foi acreditar que a revolução francesa, ao proclamar a liberdade como o maior dos bens de uma sociedade, estava falando da mesma liberdade que ele e os africanos do Haiti reivindicavam. Era e não era! Os próprios franceses não tinham clareza, embora Napoleão soubesse que não era. Uma parte dos revolucionários da metrópole acreditavam que liberdade era o oposto à escravidão, mas outros, oportunamente adeptos da ilustração racista expressavam a anátema de que o Code Noir era uma lei trabalhista aplicável para gentes não francesas, de pele escura, nos territórios da outra margem do Atlântico, afinal, como acumular riqueza sem trabalhadores grátis?

Enquanto os franceses tinham dúvidas do alcance da liberdade durante os debates da Assembleia Nacional em Paris, em 4 de agosto de 1789, os escravizados do Haiti tinham certeza de que a escravidão não era compatível com a liberdade proclamada. Demoraram para receber as notícias e precisaram dois anos para colocá-la em prática. Foi assim que em agosto de 1791, na Ilha de Saint Dominique, a mais próspera colônia francesa, as multidões de escravizados, liderados por Toussaint L’Overture, amanheceram quebrando os grilhões e declarando o fim da escravidão porque todos os homens e todas as mulheres eram livres como sempre deveriam ter sido, não só porque assim deveria ser, mas porque estava expresso na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão com vigência em toda a extensão do território francês e proclamada já há dois anos na metrópole do país que habitavam. A queda da Bastilha não poderia significar coisa diferente que o rompimento das correntes que aprisionavam os africanos no Haiti. As notícias demoravam a atravessar o Atlântico e eram bem escondidas pela oligarquia branca, donos das terras, plantações e gentes nas Antilhas.

De fato, Toussaint L’Overture havia descoberto que na Metrópole, Paris, o povo havia feito uma revolução e que a sociedade a ser construída seria livre, igual e fraterna, por isso não hesitou em hastear a bandeira da Revolução e enfrentou, de armas na mão, quem resistisse. Houve resistência, mas os proprietários de terras e gentes, brancos conscientes do que se passava em Paris, fugiram ou morreram, os mulatos livres e os crioulos brancos, capatazes, burocratas, seguiram os fugitivos para Cuba ou San Luis, Luisiania, ou aderiram, intimidados e incrédulos, ao movimento de libertação negro. Dois grandes romances latino-americanos contam essa história com poesia e encanto, O reino deste mundo, do notável cubano Alejo Carpentier e A ilha sob o mar, de Isabel Allende. Ambos contam a história trágica do desespero da guerra, mas não contam a história de Toussaint L’Overture, nem de sua traição.

Dois outros livros também indispensáveis numa biblioteca da América Latina contam a grandeza do Libertador. O primeiro é um primoroso estudo da rebelião, dos enganos dos escravizados com a revolução francesa e o papel das massas nos movimentos revolucionários, Os jacobinos negros, de Cyril Lionel Robert James, nascido em Trinidad y Tobago e um dos mais importantes intelectuais negros das Américas. James escreveu cada frase baseada em seguras fontes históricas originais e primárias, é um livro de historiador rigoroso, mas tem a beleza de um romance e a dureza de um libelo, não deve nada, em termos literários, a Carpentier e Isabel Allende. O outro livro não foi escrito por americano, mas por quem conhece a história da colonização francesa de perto, nascido nas Ilhas Maurício, Sudhir Hazareesingh escreveu a alentada biografia de Toussaint, O Maior Revolucionário das Américas: A vida épica de Toussaint Loverture.

A Guerra de independência do Haiti é gloriosa e influenciou o fim da escravidão no mundo moderno, serviu de exemplo e incentivo para Bolívar e criou teorias, conhecimento e alternativas de vida em sociedade. Foi temida, negada e combatida. Hegel não ousou citá-la, mas a estudou de perto e ao vivo (ver nesta Revista PUB Vergonha da Escravidão, que conta essa relação ambígua). Embora não fizesse parte da América hispânica, o Libertador do Haiti teve que lutar e vencer o exército espanhol, assim como todos Libertadores. Desde o início enfrentou também o exército inglês que não admitia um país negro, independente, ao lado da Jamaica, servindo como exemplo de luta e denunciando a imoralidade da escravidão. Desde o começo da guerra Toussaint L’Overture sabia que os opositores da liberdade no Haiti seriam os espanhóis, os ingleses e os franceses donos de terras na ilha, mas acreditava que a revolução francesa libertaria todos os oprimidos, inclusive os escravizados das colônias. Não foi assim, traído por Napoleão, teve que travar as mais intensas batalhas contra, exatamente, o exército francês, comandado diretamente pelo cunhado de Napoleão, General Leclerc, que sofreu duríssima derrota.

Diferente de outros libertadores que tiveram o nem sempre discreto apoio da Inglaterra, Toussaint L’Overture impôs condição aos ingleses, porque só aceitaria eventual apoio se a Inglaterra provasse sua sinceridade e votasse uma lei de libertação de todos os seus escravos, incluindo a Jamaica, e se comprometesse, na mesma lei, a guerrear todas as potências que os mantivessem e os traficassem. A Inglaterra não aceitou e riu-se da proposta, se considerava muito forte para aceitar a condição e resolveu impor seu “apoio” à força, foi derrotada. Portanto, a libertação de Saint Dominique, Haiti, se deu sem qualquer interferência ou ajuda colonialista, foi construída pelo próprio povo, pelos ex-escravizados, mulheres e homens africanos sequestrados em suas terras de origem, seus filhos e filhas. O Haiti, como outras colônias das Antilhas, tiveram sua população indígena totalmente destruída e substituída por africanos escravizados. Os poucos indígenas sobreviventes da ilha foram submetidos a uma miscigenação forçada.

Toussaint L’Overture foi o Libertador que sofreu a traição mais urdida, mais significativa e mais omitida pela história oficial. Não foi traído por seus pares, como Bolívar por Santander, San Martin e Artigas pelas autoridades independentistas argentinas, foi traído por quem impunha ao mundo uma concepção liberal de organização social. Foi pela crença na revolução francesa, pela crença na liberdade francesa. Como está muito bem contado no livro de Cyril James, Napoleão teve dúvidas se galonava L’Overture com os poderes de Estado e concedia relativa independência ao Haiti, mantendo-o como parte integrante da França, como desejava o Libertador, ou mantinha uma colônia escravocrata. Para a primeira opção necessitava um Toussaint L’Overture vivo e poderoso, para a segunda, o necessitava morto. Demonstra James, com muitos detalhes e documentos, que Napoleão tomou a decisão de matá-lo, por puro racismo, o considerou um inferior, não merecedor de galardões e insígnias francesas. Os ingleses o agradeceram por isso, temiam o Libertador.

Chegando a França onde esperava selar acordo para o fim da escravidão e um Haiti independente mas integrante do território francês, L’Overture foi preso e encaminhado diretamente à prisão de Château de Joux, onde faleceu em 7 de abril de 1803. Napoleão imaginou que sua morte tornaria o Haiti presa fácil e a manutenção da colônia escravagista estaria garantida com a divisão dos haitianos. O estrategista Napoleão errou, os esperançosos ingleses também, a morte de Toussaint L’Overture significou o fortalecimento da luta pela liberdade, a total independência do Haiti em relação à França e a constituição do primeiro país livre da América Latina e Caribe, exemplo e incentivo para todos os outros libertadores. A violência e a destruição do Haiti somente se deu muito mais tarde, na metade do século XIX, com a conjunção de forças imperialistas de destruição, na mesma época da guerra suja contra o Paraguai.

Toussaint L’Overture deve ser saudado, no momento dos 222 anos de sua traição e morte como um grande, como o maior revolucionário das Américas.

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