O Estadista da Floresta

Carlos Frederico Marés
Carlos Frederico Marés

Desprezando direitos que já estavam escritos na lei, a mineradora Vale do Rio Doce, então estatal, para economizar alguns quilômetros de trilhos da extensa ferrovia Carajás-São Luís, não hesitou em cortar um pedaço da Terra Indígena Mãe Maria, demarcada, registrada e consolidada no sul do Pará. O ato ilegal sofreria reação dos indígenas e, sem margem de negociação, ainda se vivia os tempos da ditadura, os indígenas resolveram judicializar a questão. Mas como tudo era segredo naqueles tempos, quando os indígenas se deram conta, a floresta estava derrubada, as metralhadoras apontadas e os trilhos sendo acomodados. O fato consumado. Não que a empresa não soubesse da ilegalidade, sabiam e fizeram assim mesmo, não eram tempos de muita conversa. “É só numa pontinha”, diziam os técnicos em seus gabinetes mas não em seus relatórios. “É só uma pontinha”, repetiam os práticos atrás das metralhadoras, tentando convencer o Povo Gavião que a ferrovia não traria impacto à vida deles, nem dos animais, nem da floresta. Já não estava tão fácil para a ditadura consumar o genocídio de quatro séculos. Havia resistência, leis e até um judiciário atônito que, embora reconhecesse os direitos escritos na lei não sabia como fazê-lo cumprir. O primeiro problema do sábio dirigente Gavião Parkatejê, Capitão Kokrenum, que não lia português, foi constituir advogado em nome de seu povo para a defesa dos direitos violados pela ferrovia, sem consulta, permissão ou aviso. O advogado foi constituído por instrumento público de procuração, mas quem disse que o juiz da comarca aceitaria que a Comunidade Indígena Parkatejê do Sul do Pará pudesse ser sujeito ativo de uma ação judicial e, ainda mais, representada por indígena que nem eleito tinha sido? Para o juiz, a comunidade não existia, não tinha ata de criação, registro, estatutos, eleição de representantes, firma reconhecida. Que ousadia é essa de vir um autointitulado líder de uma autointitulada Comunidade vivente em uma terra, essa sim, existente porque demarcada, registrada e reconhecida pelas instâncias oficiais, reclamar direitos violados por uma empresa estatal com ações na Bolsa e projetos aprovados?

Nem Kokrenum nem ninguém do povo deixaria por menos. O juiz tinha que aceitar porque era assim e além do mais, dizia o advogado, estava escrito na lei. O juiz, lendo a fria norma processual não aceitou a ação, mas o colegiado do Tribunal, depois de muita discussão, interpretando o Estatuto do Índio, que textualmente desde 1972 dispunha em seu Art. 37: “Os grupos tribais ou comunidades indígenas são partes legítimas para a defesa dos seus direitos em juízo, cabendo-lhes, no caso, a assistência do Ministério Público Federal ou do órgão de proteção ao índio”, acabou determinando ao juiz que aceitasse a representação e seguisse com o processo e chamasse o Ministério Público Federal ou a Funai como assistentes. Era uma vitória pálida, mas maiúscula, que viria alguns anos mais tarde se tornar texto constitucional no artigo 232 que garante às comunidades indígenas legitimidade para estar em juízo. Kokrenum com toda sua sabedoria não aceitara os conselhos de se constituir em organização social de interesse público, sabia que sua comunidade existia e nem precisa ler as leis dos brancos para ter essa certeza.

Mas não foi apenas a ação judicial. O Povo Gavião passou a importunar o ilegal traçado da ferrovia e a empresa estatal se viu na necessidade de entrar num acordo de reparação. Quando se iniciaram as discussões, o Povo Gavião fez exigências, não haveria conversa e muito menos decisão fora da aldeia e sem a presença do advogado por eles escolhido e da antropóloga que os acompanhava. E a empresa deveria pagar todas as despesas de locomoção e estadia dos dois, mas não os honorários. Durante as reuniões eram oferecidas, de forma gentil, as melhores refeições, lanches e bebidas para o advogado e para a antropóloga, mas nem um cafezinho para os representantes da Vale que levavam o próprio lanche ou, se estivessem de helicóptero, voltavam para Marabá almoçar. Assim funcionava a diplomacia de Kokrenum que era rigidamente respeitada pela comunidade e, obviamente, pelo advogado e antropóloga.

A cada dois ou três meses havia reunião na aldeia. Kokrenum dizia que enquanto a Vale não aceitasse suas condições não haveria acordo e as conversas caminhavam muito devagar. O pedido na ação era alternativo, ou retirava os trilhos ou encontrava formas de reparação justa. A sentença não tinha como não ser favorável, a dificuldade seria sua implementação e quanto mais demorava pior ficava a situação da empresa estatal. Ninguém disse isso a Kokrenum, mas ele sabia e não tinha pressa na solução. A diplomacia do Capitão funcionava, por ordem superiores os técnicos, advogados, engenheiros, economistas, contadores tinham que vir conversar, sofriam com o calor, com a indiferença do povo, com os horários de Kokrenum.

Todos o chamavam de capitão, título recebido da FUNAI dos militares que queriam “aculturar” os indígenas pela ordem unida, mas era a única hierarquia da comunidade, não havia sargentos nem coronéis, a ordem de Kokrenum era dirigida a qualquer um do povo, e obedecida, sem intermediários e sem hesitação. Um dia, marcada a reunião no dia seguinte, Kokrenum avisou que o início seria mais tarde, lá pelas oito e meia. Na noite anterior tinha ido a Marabá assistir seu primeiro filme da vida. Não gostou, disse na manhã seguinte. Perguntado qual filme era, respondeu com certo desprezo, “Tarzan!” Quando o helicóptero pousou na centro da aldeia, um ajudante de ordem do capitão, escolhido porque estava mais perto, foi levar a mensagem aos representantes da empresa que não haveria reunião com eles, só pela tarde. O helicóptero subiu levantando uma densa poeira.

Kokrenum queria finalizar uma proposta para a Vale e não precisava mais conversar com intermediários, os usaria para levar o documento final. Na reunião, agradável sem a presença da Vale, era muito concorrida e os palpites e as explicações eram demoradas, animadas e regadas a cupuaçu, bacaba e assai. Elaborado e escrito o documento, com valores, prazos e compromissos da Vale, todos foram para o centro da aldeia brincar de flechas. É fincado um galho, como arco, no chão, bem firme e a uma grande distância, os jogadores, um por vez, atiram a flecha direto no galho que recocheteia para muito longe. A brincadeira é ver quem consegue lançar a flecha recocheteada mais longe, quem perde tem que entregar sua flecha ao vencedor. Alguns acumulam muitas flechas e depois redistribui, rindo muito, a quem fica sem. Naquele dia Kokrenum perdeu todas as flechas, mas não deixava de lançar, na sua vez, tomando uma flecha qualquer de quem estivesse por perto. Todos riam dele por não conseguir ultrapassar nem os menos habilitados.

Quando chegou o helicóptero há havia pouca gente circulando na aldeia e outro ajudante de ordens levou os papeis e entregou aos representantes com as explicações decoradas. O helicóptero levantou e se foi. Dois meses depois nava reunião para formalidades de assinatura do documento. Era um momento solene e Kokrenum mandou arrumar uma mesa grande, sentou-se na cabeceira e determinando aos representantes da Vale tomassem a outra ponta. O documento foi lido e acompanhado por cópias. Kokrenum perguntou ao seu advogado “está escrito o que nós combinamos?” ao ouvir a resposta positiva perguntou à Vale “quando chega o Presidente para assinar”. Atrapalhados os elegantes senhores disseram que o Presidente não viria, mas eles tinham poderes para assinar. Kokrenum perguntou a seu advogado se isso valia. À resposta positiva e depois da explicação, fez um gesto para que assinassem. As três vias assinadas foram entregues a Kokrenum que sem vacilar chamou um indígena jovem que estava parado sem muito interesse na reunião, perto da porta e olhando para fora: “Krua, assina por nós!”. Reboliço entre os advogados da Vale, alegando a ilegalidade da assinatura do jovem preposto. Kokrenum muito calmo olhou para os advogados assustados e disse: “Na ideia dos brancos o Presidente da Vale pode escolher quem assina por ele, então na ideia dos brancos eu escolho quem assina por nós, podem ter certeza que vamos cumprir o combinado muito melhor do que vocês, não é isso que vocês chamaram, como é? … procuração?”

O documento foi assinado e depois que helicóptero desapareceu nos céus da Amazônia a festa começou.

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