
21 Jul O Circo da Cidade

Em 1983 José Richa tomou posse no governo do Paraná, democrata, contra a ditadura, eleito pelo voto popular e aclamado pela esperança de mudanças concretas, eram os ares da democracia que ia varrendo a ditadura para o lixo da história. Escolheu um novo Prefeito para Curitiba, o entulho autoritário ainda estava para ser removido. Maurício Fruet, democrata, contra a ditadura deputado federal mais votado no Paraná assumiu a Prefeitura em luta contra mandatos indiretos e, três anos depois, foi eleito pelo voto popular, diretamente, para dar continuidade ao trabalho de Maurício, Roberto Requião, com mais um mandato de três anos, puxando ainda mais para a esquerda o espectro político da cidade. Foram seis anos de governos democráticos e reformadores, contrários à ditadura, com propostas de profundas mudanças e liberdade em todos os sentidos. No poder federal ainda se manteria até 1989 governos sem voto. A censura se mantinha no Brasil, mas estava abolida em Curitiba, apesar dos olhos assustados e impotentes dos agentes federais e de alguns saudosos da ditadura.
Além das múltiplas atividades, a Fundação Cultural de Curitiba criou dois instrumentos ou espaços de cultura popular e local, um Jornal Mural e os Circos da Cidade.
A Política de Cultura da Prefeitura era voltada para a valorização das culturas locais sem censura e com muita liberdade. A tal ponto ficaram claras e anunciadas essas políticas que um dos mais renomados artistas plásticos da cidade, com quadros expostos em quase todas paredes dos bairros nobres, pediu demissão de seu cargo na Fundação Cultural de Curitiba porque não concordava com o realismo socialista, alegou. Não houve forma de convencê-lo de que não se estava estabelecendo um novo padrão cultural para a cidade, apenas a liberdade de expressão e participação popular na cultura sem desmontar os apoios à chamada arte erudita. Acostumado com a ditadura, a censura e o padrão, não conseguia vislumbrar um poder democrático e plural e não podia acreditar que alguém pudesse ser realmente democrata.
Além das múltiplas atividades, a Fundação Cultural de Curitiba criou dois instrumentos ou espaços de cultura popular e local, um Jornal Mural e os Circos da Cidade. O Jornal Mural era um cartaz com notícias, informações políticas e culturais de interesse da Cidade que era colado nos pontos de ônibus, no velho estilo de cola de goma e vassoura, e afixado em outros locais como Universidades, escolas e até bares. Eram quinhentos exemplares colados e distribuidos num trabalho hercúleo, a cada quinze dias. Os usuários dos ônibus o liam. Era colado de madrugada e no dia seguinte se podia ver pequenos grupos lendo as notícias frescas estampadas nos cartazes. Um dia houve uma chamada para um curso gratuito de xadrez que seria ministrado numa das dependência da Fundação. O curso foi anunciado somente no Jornal Mural e uma única vez. No dia aprazado a fila de postulantes dobrava a esquina, ninguém podia imaginar que houvesse tanta gente interessada em aprender xadrez e nem que tanta gente lesse o Jornal Mural. Era um sucesso, mais do que isso, era a vitória da liberdade. O povo começa a perder o medo do Estado e lentamente ocupar os espaços públicos e os reivindicar. Mas tudo isso não aconteceria sem os Circos da Cidade. Foram criados quatro Circos, cada um deles ficava instalado quatro meses num bairro periférico sem equipamentos ou espaços culturais. Cada mês um Circo era inaugurado. A escolha do bairro dependia de reivindicação das organizações de bairro que se comprometiam com a cogestão, com a programação e com a segurança dos quatro meses. Não havia polícia, guarda, nem censor. O Circo era um Centro Cultural, tinha atividades circenses, oficinas de música, artes plásticas, dança, teatro. Uma vez por semana virava cinema e era projetado um filme de qualidade em precários 16mm. O filme mais assistido no período, com direito a muita reprise, foi Macunaíma. Mario de Andrade gostaria de saber e para que o conhecessem melhor, uma biblioteca era montada de forma permanente e com aquisições de livros, com verba pública, sob livre escolha dos leitores.
Quem já viu uma lona de Circo levantar do nada, subir colorida do chão nu, pode imaginar o espetáculo e emoção da comunidade que teria pela primeira vez um Centro Cultural a sua disposição. O trabalho dos circenses ficava facilitado pelo entusiasmo da comunidade que emprestava seus braços fortes, disciplinados e acostumados a tarefas pesadas.
Quem já viu uma lona de Circo levantar do nada, subir colorida do chão nu, pode imaginar o espetáculo e emoção da comunidade que teria pela primeira vez um Centro Cultural a sua disposição. O trabalho dos circenses ficava facilitado pelo entusiasmo da comunidade que emprestava seus braços fortes, disciplinados e acostumados a tarefas pesadas. Na noite de inauguração, invariavelmente uma sexta feira, tinha Banda Lyra de Curitiba, discurso do Prefeito, apresentação das lideranças da comunidade e uma peça erudita de música, com violinos e violas, às vezes barroca e, obviamente, tudo apresentado com humor pelo Palhaço Linguiça que dava o tom leve e brincalhão para aguçar os sentidos da vida e da arte. A plateia ocupava todos os espaços possíveis e mantinha um silêncio profundo que explodia de tempos em tempos em risadas e aplausos. Havia uma solenidade no ar, tudo era escutado e apreciado por uma multidão de olhos atentos, mulheres, homens, crianças, jovens e velhos, emocionados com aquele imenso espaço cultural logo ao lado de sua casa. Antes da chegada do Circo havia discussão, preparação, formação de grupos de segurança, de programação e de gestão. Os mais interessados frequentavam os Circos que estavam nos outros bairros para aprender e melhorar. Quando o Circo chegava já havia em formação grupos de música, teatro, artes plásticas, gravura, pintura, e, certamente, apresentadores e, as vezes, novos palhaços dando folga ao Linguiça ou lhe servindo de escada.
A saída do Circo do bairro só não era mais triste porque sempre ficavam estruturas culturais, a biblioteca, o cinema semanal, oficinas de teatro, música e artes plásticas, em espaços menores, pequenos em geral acanhados Centros Culturais administrados pela comunidade. Alguns bairros criavam uma rádio daquelas antigas, com alto-falantes e notícias locais. O Jornal Mural, destaque da porta do Circo, continuava nos pontos de ônibus e no Centro Cultural noticiando a inauguração. Não demorou muito para que grupos teatrais e musicais de um bairro se apresentassem nos outros e fossem criados festivais de teatro e música com esses grupos.
Todos os espaços culturais do centro da cidade serviam as atividades dos bairros, a Fundação mantinha Cinemas com portas abertas e boa programação, os frequentadores do Circo da Cidade e dos pequenos Centros Culturais que remanesciam ganhavam ingressos para diversas sessões e vinham ao Centro assistir filmes, com projeções de muito melhor qualidade. O Teatro Guaíra cedia ingresso em algumas sessões de teatro ou música que eram distribuídos. O Teatro Guaíra, por sua grandeza acaba sendo hostil às populações de bairro, por isso, o pessoal do Circo sempre acompanhava essas incursões, com uma espécie de visita guiada pouco antes da sessão para criar uma intimidade necessária entre o espaço e o espectador. Um senhor de idade acompanhou a visita e ao entrar na plateia magnífica, diante das milhares de poltronas alinhadas em veludo vermelho dando visão à enorme boca de cena aberta, iluminada e emoldurada por pesadas cortinas não conteve um choro convulsivo e demorou para conseguir explicar que tinha trabalhado na construção do Teatro, como pedreiro, e não tinha ideia da beleza e opulência que havia ajudado a construir, chorava de orgulho. Depois de um tempo já não se sabia quem era oriundo da elite intelectual da cidade e quem vinha do Circo para desenvolver a sofisticada técnica de litogravura com as pedras e prensas públicas da Casa da Gravura no requintado Solar do Barão. Os frequentadores dos Cinemas de Bairro começaram a se dar conta da diferença técnica das projeções do centro e passaram a reclamar melhores equipamento nos bairros.
Em 1987 e 1988 a Fundação Cultural de Curitiba armou mais um Circo, na Praça Santos Andrade, que chamou de Circo da Constituinte. Por meses a fio até a aprovação da Constituição em 5 de outubro de 1988, ocorreram debates sobre os projetos e propostas para a Constituição. Acadêmicos, políticos, sindicatos e movimentos sociais marcavam concorridas reuniões e debates para explicar, aprofundar e organizar propostas. Quase 20 anos depois, em 2016, quando a democracia foi ameaçada pelo impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, alguns sindicatos liderados pelo Sindicato dos Engenheiros do Paraná, espelhados no Circo da Constituinte ,e com a aprovação do Prefeito, filho de Maurício Fruet com quem tudo começara, Gustavo Fruet, montaram o Circo da Democracia, mas a Fundação Cultural já não tinha Circo e os sindicatos receberam o apoio da Família Zanchettini, tradicionais circenses da cidade. No Circo da Democracia os debates já não eram marcados pela esperança de 1988, mas pelo medo de 2016. Dilma esteve presente uma noite no Circo da Democracia, ainda Presidenta, uma multidão a acompanhou na cidade onde se armava a prisão de Lula. Foi um momento de grande emoção, especialmente a para família circense que não tinha notícia de que a qualquer tempo um Presidente da República tivesse falado, como tal, sob uma lona armada em Circo. Os preconceitos contra circenses não é pequeno!
Houve quem criticasse a iniciativa, na Constituinte e na Democracia, dizendo ser impróprio chamar de Circo um lugar onde se debate com tanta seriedade. Achavam que deveriam chamar de Lona, Espaço ou qualquer nome que não fosse Circo que lembrava palhaço, riso, festa e periferia feliz. Era ignorância e preconceito, quem criticava talvez nunca tivessem sentido o encanto de ver uma lona subir na periferia e transformar o vazio em sagrado lugar de encontro, nunca tinham frequentado o Circo da Cidade. O nome ficou e ninguém ousou desmerecê-lo. Quem o faria? O Circo não é uma brincadeira inconsequente, é a arte do equilíbrio e da confiança, basta ver os trapezistas, os malabares e o globo da morte, assim também é a democracia e sua fragilidade depende da confiança e do equilíbrio das partes e oferece como espetáculo a harmonia da vida social.
Votada a constituinte em 1988, no ano seguinte a oligarquia se desvestindo do passado servil aos governos militares, se fantasiando de democrata contra a censura e a repressão, retomou o poder em Curitiba, os Circos foram fechados, o Jornal Mural deixou de ser colado nos muros, os Centros Culturais, Bibliotecas e Cinema de bairro forem se extinguindo, à míngua, afinal não há nada mais perigoso para as oligarquias do que um povo que discute num espaço tão aberto como um Circo que pode levantar suas saias e permitir que multidões escutem, falem, pensem, dialoguem, reivindiquem e lutem por liberdade e democracia, como ocorreu no Circo da Cidade, da Constituinte e da Democracia.
Outros Circos terão que vir para o Brasil sorrir sem medo de ser feliz.
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