Antônio Tavares: O monumento

Carlos Frederico Marés
Carlos Frederico Marés

Antônio Tavares foi expulso das terras em que plantava seu sustento às margens do Rio Paraná. Não tinha certidão nem escritura, lhe bastava a foice, enxada e braços fortes. A terra, generosa, retribuía o suor derramado com frutos tão abundantes que alimentava toda a família e ainda distribuía aos vizinhos. As comportas de Itaipu se fecharam, porém, e as águas subiram, subiram muito. Plantação, casa, chiqueiro, submersos. Antônio Tavares foi avisado que poderia retirar as coisas. Teve tempo, mas não para onde levar. A empresa é que não iria pagar indenização a quem nada tinha, cadê os papéis? Só os papéis valem para indenizar, a vida não! É verdade que tinha a terra e a terra lhe reconhecia e retribuía, mas não tinha papéis. Não deu para não sair, não era peixe, nem poderia plantar debaixo d’água. Virou sem-terra.

Olhou a imensidão das terras vazias mas não conseguia ultrapassar as cercas, aliás, conseguia, mas seria enxotado na hora. Sozinho, quem pode? Juntou-se ao MST e conseguiu um pedaço de terra para plantar, ter filhos, esperança no futuro. Mas já havia aprendido, muito antes de ser expulso por Itaipu, que a terra se conquista e se mantém na luta coletiva, na organização, na conversação, na solidariedade. Por isso não teve a menor dúvida em embarcar naquela caravana que traria mais de mil e quinhentos companheiras e companheiros para Curitiba para negociar com o Governador Jaime Lerner.

Corria o ano de 2000. O início do milênio estava sendo muito violento no Paraná. Lerner aliado a outros partidos da direita queriam acabar com o MST e sua luta, por isso despejos ocorriam em tempo recorde, de madrugada, com decisões judiciais provisórias e duvidosas. Repetia-se a política da ditadura: camponês consciente não se pode admitir. Os sem-terra resolveram ir a Curitiba negociar. Pretendiam conversar com o Governador, mostrar que não eram poucos e que eram pessoas, cidadãos, cidadãs, crianças, velhos e que não queriam mais que um pedaço de terra para plantar. Atenção: plantar, trabalhar na terra, produzir alimentos. Também queriam que o Incra fizesse alguma coisa, o Incra naquele momento era aliado de Lerner. Iriam explicar ao mandatário que a terra serve para isso: plantar, produzir alimentos pra quem planta e para as cidades. Não poderia ser tão difícil entender, ainda mais com as comemorações do dia do trabalhador. Diziam que o Governador gostava de cidades, quem sabe pudesse se preocupar com as gentes e com alimentos da cidade. Não custava explicar, tentar negociar. Nenhuma pessoa da caravana portava qualquer arma. Acreditavam no argumento, em suas certezas de querer trabalhar a terra. Precisavam falar com o Governador e com as autoridades, mostrar as mãos calejadas, a força dos braços, o poder da palavra. Vinham confiantes.

Não conseguiram! O Governador ficou com medo e mandou a Polícia Militar fortemente armada impedir que chegassem à Curitiba. Num lançante da estrada, em Campo Largo, quase chegando, os ônibus foram parados, todos. Não que não tivessem sido admoestados desde a saída de suas cidades distantes. Mas ali, muito próximo a Curitiba, preparada para a guerra, a Polícia Militar parou os ônibus e mandou que voltassem. Era mais uma violência. Para saber o que estava acontecendo e, quem sabe, parlamentar com a polícia, desceram. Antônio Tavares organizava a descida. A um sinal invisível aos olhos camponeses, o tiroteio começou. Eldorado de Carajás, Canudos, Contestado, Santa Maria de Iquique. Todas as mortes, assassinatos e violências contra os povos da América Latina se repetiram naquele dia de horror, era 2 de maio de 2000. Não havia ordem judicial, nem desordem, nem ameaça, nem risco de nada. Só violência fria, ódio e medo. Essa foi a recepção do Governador a quem queria apenas conversar. 150 feridos, uma viúva e cinco órfãos, o saldo do medo do Governador. Feriram 10% das pessoas da caravana e mataram o camponês expulso por Itaipu.

A bala de chumbo não se perdeu, atingiu o alvo e Antônio Tavares tombou, o sangue escorreu, a terra chorou. Companheiros o socorreram e um carro particular o levou ao Hospital. A Polícia Militar desprezou a morte, os feridos, as lágrimas e a dor. Apenas cumpriram ordens! Eram bem treinados e bem mandados e não podiam permitir que a emoção os amolecesse, feriram 150 pessoas em fuga, desarmadas e mataram apenas um. Acidente, disseram. Antônio Tavares não resistiu. Morria naquele dia não apenas um lutador, mas um lavrador, que lavrava a terra e forjava a vida, desarmado, preparado com palavras alinhavadas e ensaiadas para pedir que os deixassem produzir comida. Morria o lavrador Antônio Tavares, o atingido pela barragem de Itaipu, o atingido pela violência do latifúndio, o atingido pela bala calculada de Jaime Lerner, passou a ser exemplo de vida e sua morte um grito que não pode ser esquecido.

Oscar Niemeyer soube do episódio. Comovido, desenhou um monumento, seria mais uma de suas quantas esculturas de protesto, se juntaria ao Juscelino sorrindo vitorioso sobre a cidade tomada pelos militares, em Brasília, aos três metalúrgicos mortos e a própria escultura explodida pela direita raivosa, em Volta Redonda, à grande mão sangrando da América Latina, em São Paulo, à Tortura Nunca Mais, no Rio de Janeiro, aos sequestrados e escravizados da África, na ilha de Gorée, Dakar e outras mais. A escultura de Antônio Tavares e a luta do MST foi implantada em Campo Largo, a beira da estrada muito próxima do ponto onde a bala covarde ceifou a vida do lavrador. Campo Largo passou a integrar a rota das esculturas de protesto de Oscar Niemeyer. A arte cumprindo sua função de manter viva a memória dos tempos, revelando a beleza da vida nas intersecções da morte.

Mas a violência não cessou nem nos campos, nem na memória. Os despejos continuaram e o monumento ameaçado de ser arrancado do local. Há muito se tenta inscrevê-lo no livro do tombo municipal, estadual ou federal. Mas a violência tem impedido. Até mesmo um parecer jurídico do Estado do Paraná foi proferido alegando que Niemeyer não era artista e o monumento era uma manifestação política e não artística, não merecia estar no livro do tombo. Não só impedem que seja tombado como patrimônio artístico brasileiro há uma clara intenção de destruí-lo ou, pelo menos, tirá-lo para bem longe dali. Como Guernica, o querem exilado para que não revele a violência do ato. Mas o monumento continua plantado como uma sólida árvore da esperança, protestando, como queria Niemeyer, contra a violência, a injustiça e a fome.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, mantém sua integridade, em caráter excepcional, até o encerramento do processo que julga as violações do episódio. A Corte entendeu que a retirada do monumento seria mais uma violência aos feridos, à viúva, aos filhos e à memória de Antônio Tavares. Por força dessa decisão, ainda que provisória, como queria Niemeyer e os lutadores por direitos humanos, o monumento é visto todos os dias por quem passa pela principal rodovia do Estado e alerta para a vida ceifada e a violência cometida.

Os passantes não sabem, porém, que todo dia o camponês renasce. O monumento é um enorme punho cerrado em concreto vazado com a figura de um camponês e sua foice. Todos os dias, quando o sol se desperta, projeta na terra a figura do homem deitado, morto, cercado pela sombra do concreto. Parece o desenho a giz, icônico, dos assassinados. E é! Mas, na medida em que o sol vai subindo, o camponês se levanta e mais uma vez ergue muito alto sua foice, está renascido e pronto para a eterna luta por dias mais justos e mais felizes. Quem morre na luta renasce no exército encantado, repetia Monge José Maria para quem o quisesse ouvir.

O Monumento Antônio Tavares repete o que disse Niemeyer em Volta Redonda quando explodiram o monumento IX de novembro: “Nada poderá deter os que lutam pela Justiça e Liberdade”, nem as bombas, nem as balas.

Antônio Tavares! Presente!

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