11 Mar Racismo, Natureza e Mulheres
“Em nós, até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime“. Esta frase não foi pronunciada no Carrefour de Porto Alegre pelo pai de Beto Freitas, entre lágrimas, nem foi traduzida dos protestos de Minneapolis em maio de 2020. Foi escrita há 140 anos, em 1º de dezembro de 1880, por Luiz Gama (Ferreira, Ligia Fonseca. Lições da Resistência. São Paulo: Sesc, 2020, p. 256). Porém, a expressão ‘defeito de cor’ tem origem cem anos antes e expressava a proibição, racista, de afrodescendentes ingressarem nos quadros da Igreja como eclesiásticos, como nos ensina a Profa. Ligia em seus comentários ao escrito de Luiz Gama.
A invenção do ‘defeito de cor’ é, portanto, recente, localizada. E muito oportuna. Afinal, o que são duzentos e cinquenta anos na história da humanidade? Mas é também localizada e só nasceu para justificar a infâmia da escravização de gentes para produzir riqueza para outras gentes. Por isso foi, e ainda é, muito oportuna, como dizia Luiz Gama no mesmo texto, “esta cor é a origem da riqueza dos salteadores que nos insultam“. Portanto, não surpreende que os salteadores do trabalho humano inventassem o termo e o usassem com a convicção dos ignorantes e o cinismo dos aproveitadores. A expressão e o racismo que revela foram inventados exatamente para justificar a injustificável superexploração de gentes e terras que sempre marcou o colonialismo. O racismo é filho do colonialismo moderno, da modernidade, então. As irmãs gêmeas do racismo, que lhe dão suporte e organicidade, atendem pelo nome de destruição da natureza e misoginia. A modernidade inventou o racismo e atacou todos os coletivos humanos, apartou a natureza do convívio social e empurrou as mulheres para um papel subalterno na sociedade. Sobre os três estabeleceu o império da violência. Por isso, apesar do sistema não precisar mais da escravidão, precisa do racismo intimamente ligado à destruição da natureza e da misoginia. Mas é possível mudar, e muda porque a discriminação gera resistência. Por ser oportuno e vantajoso, os racistas não mudaram, nem mudarão por vontade própria, mas pela resistência da sociedade. A resistência é tão antiga quanto o fenômeno, mas agora está gerando efeito.
O que surpreende é que no século XXI, ainda, a cor continue sendo defeito, vício e estigma e suas irmãs gêmeas mantidas. Mas a manutenção será cinismo ou ignorância? Ignorância? Mas o que os racistas ignoram? Ignoram que gente é gente? É verdade que os ignorantes são ignorantes, olham e não veem, não conseguem ver a curvatura da terra, nem as mudanças de clima, nem a fome alheia, nem a humanidade das mulheres. Mas será que ignoram mesmo ou só fingem? Será que não conseguem ver mesmo ou entrecerram os olhos e, entre si, riem por negar a verdade? Mas, se fingem, porque fingem? O que ganha o vice-presidente General Mourão fingindo que ignora que o morto seja preto ou que morreu por sê-lo? Bem, ele também ignora a irmã gêmea do racismo e não admite que a Amazônia está sendo destruída. É muito difícil acreditar que seja ignorância. Deve haver intenção ao ignorar, é oportuno.
Mas, qual é a intenção? Em relação à raça é segregar, de tanto escutar que é um defeito, um vício e um estigma, a ação mais fácil é segregar, por se não fizer, tem que se justificar aos pares e fazer a crítica. O Carrefour aceitou (ou determinou?) que seus agentes de segurança dessem um recado, já havia dado antes: ‘melhor os pretos não entrarem para compras!’. Aliás, esse é o mesmo recado que pretenderam dar os supremacistas de Joinville à vereadora eleita Ana Lúcia Martins. Ameaçá-la de morte é intimidar suas ações e avisar aos demais que não tentem tomar lugares de poder! Uns ameaçam, outros matam. Marielle foi morta, Beto Freitas foi morto.
O racismo, o desprezo pela natureza, a misoginia já não conseguem mais se esconder. O discurso mudou, não podendo mais defender que pretos, índios, mulheres e natureza sejam seres inferiores, negam que alguém pense que são. Essa não é uma negação de ignorância, mas conhecimento do fenômeno e a vontade de abrandá-lo. E essa mudança de discurso se dá porque a sociedade reagiu e vem reagindo. Quando o General Mourão, comentando o assassinato de Beto Freitas, disse ‘não existe racismo’, todos notaram que está apenas revelando o seu racismo. Foi rasgado o véu. Ignorância, cinismo, soberba.
A ferida da sociedade brasileira escravagista, machista, destruidora da natureza está sendo purgada. Dói! dói muito! Ainda expelirá pus como as palavras do General e as ameaças contra a vereadora. Ainda haverá mortes, queimadas, violências. Pus. Medo!
Mas não há outra maneira senão gritar a dor, revelar o mal. O remédio é amargo, arde, parece causar mais dor que a dor que estava escondida, envergonhada, porque aquela não era sentida por todos, só pela vítima, por quem a sofria. Ir purgando as feridas fez aumentar a dor da sociedade, mas também aumenta a esperança de cura. O Carrefour não pode mais terceirizar seus crimes, como fizera antes, e resolveu criar uma comissão para lhe ensinar como agir, encontrou uma forma arrogante de dizer que não sabia como tratar pretos em seus estabelecimentos, revelando a amplitude do racismo de seu negócio. Alegou ignorância. Aprenderá? Quem sabe?
A sociedade brasileira tem ainda um longo caminho a percorrer, nem ensaiou os primeiros passos em direção à justiça, o corpo ainda está coberto de feridas, purgando, latejando, cheirando mal. E até por isso mesmo fica difícil esconder. Mas está purgando, já se pode escutar a voz da resistência e a denúncia dos crimes que, se ainda impunes, envergonha o criminoso que precisa se esconder, negar e até alegar fingida ignorância.
É incomparável a dor da violência diretamente sofrida e da socialmente assumida, mas é fundamental que e a sociedade assuma a cada pessoa agredida, a cada natureza destruída haja uma multidão indignada, solidária e disposta a resistir.
Resistência é a palavra, indignação é o sentimento!
A demarcação de Terras Indígenas. (2020, 2 diciembre). Revista PUB. https://www.revista-pub.org/post/a-demarca%C3%A7%C3%A3o-de-terras-ind%C3%ADgenas
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