POR UM PUNHADO DE OURO

Carlos Frederico Marés

Quanto custa aquela barra reluzente de ouro que o pastor ostentou na cafeteria do Hotel? Ele tinha boas relações no Ministério de Educação e achava que ‘educação vale ouro’, por isso exibia a esplendorosa barra de um quilo, pesada demais para guardar na algibeira. Só para fazer vista! Mas quanto custa? Um jornalista, desses que fazem contas, respondeu bate pronto: 300 mil. 300 mil? De fato, não é valor para se levar no bolso, ainda que o Hotel seja de luxo, com seguranças e outras garantias, mas se não mostrasse ficaria escondido e de que vale ter uma barra tão valiosa que não se pode exibir aos incrédulos? A cena é muito mais triste do que aparenta. Dizem que a barra de ouro exibida era a moeda de troca para um município pobre receber grosso dinheiro do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para empreitadas corrompidas como comprar robôs inúteis. O Município pobre só recebe o dinheiro, não desenvolve a educação. Uma barra de ouro para um, uma de prata para outro e uma terceira, de bronze, para alguém, o resto para o negociante de robôs, que no fundo nem robôs entregou, pra quê? Nem escola havia.

Trezentos mil reais equivalem a mais que 35 mil quilos de feijão. 35 toneladas de feijão! Saber quanto tempo quantas pessoas são alimentadas com uma toneladas de feijão já não é conta para qualquer aritmético, muito menos saber quantas merendas escolares cabem no bolso do pastor exibido. Essa é uma conta para gente que trabalha, que cozinha, quem sabe a resposta é a merendeira, perguntem-lhe se faz falta 35 toneladas de feijão, foi da despensa da escola que saiu a barra de ouro, não em ouro, é claro. Alguém revelou a conversa do ministro da educação com os prefeitos dizendo que dinheiro do FNDE só seria repassado por indicação dos pastores ali presentes. E um dos pastores pedia que a contrapartida fosse em barras de ouro. E exibia, dizem. É mais uma desastrosa história da educação neste governo, mas poderia ser da saúde, da cultura ou dos transportes.

Mas porque alguém deseja levar uma barra de ouro no bolso? Com uma nota de cem já é complicado comprar feijão no mercadinho, faltará troco. É estranha essa sociedade de homens brancos, tementes a deus, que se curvam submissos, mas sem temor, à adoração de um pedaço de minério incomível, imbebível e inolfatável, o bezerro de ouro. Mas atenção, o ouro não é indolor. Ao contrário, causa muita dor, não só pela ausência do feijão na escola e na merenda, que já muito seria, mas até chegar ao bolso do pastor o caminho percorrido foi manchado de sangue, enfermidades, poluição, trapaças, violências, fraudes. Tudo para, depois de exibir orgulhoso na cafeteria, guardar bem guardado num cofre de sete segredos.

O ouro tem que ser desenterrado ou separado dos seixos nos rios. É nesse primeiro esconderijo que deveria ficar para sempre, insiste Kopenawa.

O ouro estava escondido debaixo da terra. Quem o colocou lá? Pergunta Davi Kopenawa, o iluminado xamã yanomami. Ele mesmo responde: quem fez a terra e tudo que nela há. E porque colocou bem escondidinho? Para que fique lá, responde mais uma vez. Por que a sociedade da mercadoria (Davi chama a sociedade hegemônica, branca, de sociedade da mercadoria) tem tanta ânsia de tirar de lá só para deixar guardado depois? Davi e seu povo sabe que não é bom mexer com o ouro, causa doenças, destrói amizades, corrompe, a mina mata. A história do pastor foi apenas um elo na corrente de maldição do ouro que começa escondido entre terra e cascalho e termina escondido no cofre.

O ouro tem que ser desenterrado ou separado dos seixos nos rios. É nesse primeiro esconderijo que deveria ficar para sempre, insiste Kopenawa. O garimpo ou a mineração do ouro é mortal na acepção literal da palavra. Carta Capital traz uma matéria sobre como uma mineradora canadense de nome Aurizona depois de poluir os rios de Godofredo Viana (Maranhão) fornece água contaminada para a população. As áreas de mineração, não só do ouro, embora movimentem imensos capitais não geram riqueza para as gentes da região explorada, ao contrário. Mas extrair riqueza e semear pobreza absoluta não é o maior problema da extração do ouro.

A Fiocruz desenvolveu um estudo minucioso sobre o impacto do garimpo do ouro em aldeias do povo Munduruku que margeia o Rio Tapajós, no Pará (veja aqui). O garimpo utiliza mercúrio para amalgamar o ouro e separá-lo do cascalho e seixos do rio. O mercúrio, aquele mesmo que era usado nos termômetros, proibido porque a gotinha prateada e escorregadia causava danos à saúde dos usuários, amalgama o ouro e escorre pelo rio, chega aos peixes, ao solo, às plantas e em tudo quanto deles se alimenta. Vai se acumulando no organismo das pessoas e afeta os rins, fígado, aparelho digestivo e o sistema nervoso central. O estudo mostra a contaminação praticamente irreversível da população local, indígena. Mostra como ela se espalha a quem consumir os peixes e a quem consumir o que consumiu os peixes. A poluição do mercúrio tem braços longos.

A conveniente memória fraca do pastor que exibiu a barra de ouro em Brasília e todos quantos o antecederam e sucederam na corrente da maldição, desde os pobres garimpeiro aos ricos compradores do Canadá, Itália e Reino Unido, faz esquecer o Desastre de Minamata, no Japão, em 1952. A contaminação por mercúrio foi brutal e de graves consequências. A tal ponto que foi aprovada a Convenção de Minamata cujo nome não é um trocadilho macabro, apenas uma homenagem aos mais de mil mortos da região japonesa. A Convenção tem o objetivo de diminuir o uso de mercúrio no mundo impondo restrições ao mercado, mas esbarra no ardil do garimpo. A maior parte da atividade garimpeira é ilegal portanto não tem muita importância que os insumos também o sejam. São conhecidos os garimpos ilegais nas terras indígenas causando mortes e corrupção. Contava-se que altos funcionários recebiam latas de leite ninho cheias de pepitas apenas para não agir em relação aos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami.

No dia 11 de abril de 2022 a Hutukara Associação Yanomami lançou em Roraima um relatório impactante sobre o aumento do garimpo e a destruição da natureza, da cultura, da integridade física e da dignidade do povo e muito especialmente das mulheres yanomami (veja aqui). Os danos não são só causados pelo mercúrio na saúde das pessoas, destroem os rios, os peixes e as culturas, indígenas ou não. É ilegal, mas o pastor não está preocupado com a ilegalidade da origem, afinal, sua aquisição também foi ilegal assim como a transferência do recurso para o Município. A ilegalidade é a normalidade do ouro.

O Instituto Escolhas apresentou um contundente estudo onde demonstra que metade do ouro produzido no Brasil tem fortes indícios de ilegalidade que é maquiada pela frágil e condescendente legislação e fiscalização (veja aqui). É ilegal e não pode ser declarado o ouro extraído em terras indígenas, em unidades de conservação e em quantidade excedente à permissão, mas é das três ilegalidades que sai metade do ouro produzido no Brasil. Todo o estudo foi feito sobre dados oficiais, o que significa que deve ser só a ponta do iceberg. Apesar da quantidade ilegal, o sistema jurídico permi
ssivo impede a fiscalização. Os grandes compradores sabem da origem e continuam comprando. Como o pastor, sabem da ilegalidade e se vangloriam dos resultados.

Enquanto isso a destruição continua, a natureza e os povos são intoxicados pelo mercúrio, as mulheres violentadas nos garimpos, os alimentos destruídos e contaminados, a paisagem devastada, as prateleiras de merendas escolares e os cofres da República esvaziados. E o ouro volta a ser escondido, agora em imponentes e elegantes cofres de cidades distantes. Até quando?

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